É bom saber como surgiram todas as inovações criadas pela Apple. Mas o melhor mesmo da biografia que já nasceu como livro do ano – Steve Jobs (Companhia das Letras, 632 páginas, R$ 49,90) – são as incontáveis mutretas que o biografado fez para materializar todas as suas vontades. E o truque maior usado por Jobs para erguer o seu império é muito bem detalhado na obra. Vai além do uso de inteligência e não se baseia apenas em ideias inovadoras de marketing.
O truque é o tal do “campo de distorção da realidade”, a maior arma de Steve Jobs. Esse campo é como um colega de trabalho de Jobs definiu o seu comportamento inconstante. Você entra nessa zona a partir do momento em que trava conhecimento com o criador da Apple. Se você possui algo que lhe interessa (inteligência, dinheiro, contatos), ele manipula os fatos de um jeito tão original que, eventualmente, você vai ceder às vontades dele.
E o melhor: os efeitos colaterais são poucos. Tanto é verdade que o respeito do público por ele continuará tão absoluto, sem ressalvas ou notas de rodapé, mesmo depois de perpetrar muita tramoia para conseguir o que queria.
O biógrafo Walter Isaacson aproveita esse campo como fio condutor de todas as guinadas nos negócios da Apple e na vida de Steve Jobs, mostrando um lado obscuro dele que simplesmente não casa com a condição de ícone perfeito ao qual foi alçado depois da sua morte – ou até mesmo antes dela. E o fato de essa contradição se sustentar tão bem é só mais um dos truques geniais de Jobs.
O leitor, no meio do campoPara ter uma ideia de como funciona o “campo de distorção da realidade”, Isaacson faz com que o leitor sinta um pouco como é estar nesse lugar. Ele só deixa o seu biografado falar por vários parágrafos e sem interrupções nas últimas páginas do livro. Nesse longo trecho, Steve Jobs tenta resumir o que gostaria que o seu legado fosse.
Ao longo de quatro páginas, Jobs mostra que tem plena consciência de que a base do seu talento estava mais na capacidade de organizar e apresentar de um jeito novo ideias de outras pessoas do que ter o trabalho de ser, ele mesmo, original. Ele fala de um jeito pomposo, mas com o cuidado de não transparecer nenhuma arrogância.
Aqui experimentamos a sensação de estar no “campo de distorção da realidade”, porque o que Steve Jobs fala sobre o seu legado só está certo quanto aos fins. Ele enfeita os meios de um jeito tão absurdo que consegue a nossa indiscutível simpatia, mesmo depois de ler quase toda a sua história, na qual gentileza e ética são tão presentes quanto um figurante que morre nos primeiros segundos do filme.
Ao deixar Steve Jobs falando sozinho por quatro páginas, Walter Isaacson prova que nem os fatos expostos por ele mesmo – e nunca negados por Jobs – se sobrepõem ao maior talento na arte da lábia que já existiu.
Os movimentos escusos que ele fez para erguer a Apple finalmente chegaram a público, sem que ele negasse nada. Ainda assim, Steve Jobs foi para o túmulo sendo tratado como um deus. É surpreendente como 7 palmos de terra conseguem abafar o tamanho da risada que ele deve estar dando até agora.
A maior sacanagem que fez (e da qual foi vítima)No final de 1979, em uma visita ao centro de pesquisas da Xerox, Steve Jobs e mais alguns membros da equipe da Apple foram apresentados à interface gráfica e à tela de bitmap inventada pela companhia. O pessoal da Apple não só não conseguiu esconder a empolgação com a invenção alheia como copiou descaradamente a ideia. “Picasso tinha um ditado que afirmava: ‘Artistas bons copiam, grandes artistas roubam’. E nós nunca sentimos vergonha de roubar grandes ideias”, dizia Jobs, sem uma nesga de remorso. Quatro anos depois, Bill Gates desencadearia a mesma sequência de fatos, só que dessa vez, a vítima seria o próprio Steve Jobs. Ele apresentou a interface gráfica do Macintosh para Gates, que, meses depois, anunciaria a criação de algo semelhante, o que viria a ser conhecido como Windows. O impasse foi discutido em uma reunião na qual Bill Gates foi confrontado por Steve Jobs e vários membros da Apple. Ao ser acusado de roubo por Jobs, Gates respondeu: “Bem, Steve, penso que existe mais de uma maneira de ver a coisa. Penso que é assim: nós dois tínhamos esse vizinho rico chamado Xerox, invadi a casa dele para roubar o aparelho de TV e descobri que você já tinha roubado”. A ironia maior de todo o imbróglio: a Xerox virou sinônimo de fotocópia.
Coisas de Jobs
1- Steve Jobs e Stephen Wozniak percorreram várias cidades dos Estados Unidos nos anos 1970 atrás das gravações piratas dos shows de Bob Dylan feitos por volta de 1965, justamente a fase em que o cantor havia adotado de vez a guitarra elétrica em suas apresentações. Na mesma década, Jobs passou uma temporada na Índia, se tornou uma pessoa zen, aderiu a um vegetarianismo radical e só tomava um banho por semana.
2- Quando a Apple começou a tomar forma no começo dos anos 1980, Steve Jobs, percebendo que a sua grosseria incessante influenciava negativamente o rendimento dos seus funcionários, decidiu premiar aqueles que enfrentavam os seus rompantes de raiva. Claro, se os funcionários provassem que tinham argumentos melhores, o que era uma aposta muito mais arriscada do que simplesmente ouvir calado um “você é um babaca ignorante e esse serviço está um lixo”.
3- Em 1983, Steve vira para John Sculley, então presidente da Pepsi, e diz: “Você quer passar o resto da vida vendendo água adoçada ou quer uma chance de mudar o mundo?”. Foi a última e bem-sucedida tentativa de convidá-lo para ser CEO da Apple. Dez anos depois, ele foi demitido por Steve Jobs justamente por tentar fazer o trabalho para o qual foi chamado: controlar Steve Jobs.